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Onipresente e despercebida

 "como na música, nós, os leigos, possuímos tal familiaridade a ponto de podermos escolher um filme ou livro ao nosso gosto"

A música envolve. É assombroso como certa organização de sons (ou, esmiuçando mais ainda, de ondas no ar) rompe a estática do ouvinte. Ouvir música é permanecer impassível à sua manifestação. O poeta que assinalou "você é a música / enquanto a música dura" tem suas palavras comprovadas numa rápida observação da rotina urbana: academias de ginástica motivam os exercícios com ritmos marcados, fones de ouvidos sopram músicas enquanto usamos o computador, o vizinho reclama da música alta através da fina parede, a diversão do fim de semana se constrói sobre a música, e assim adiante.

A experiência com a música não se resume a ouvir: interessados em aprender instrumentos musicais não são incomuns. Todos conhecemos um ou outro com alguma intimidade com instrumentos musicais. A música nos envolve de maneira tão natural que não percebemos o quanto somos atraídos e usufruímos da experiência musical. Seja ouvindo ou fazendo, temos familiaridade com a música o suficiente para a definição de um senso do que nos é agradável ou não.

 

Mas este texto é sobre arquitetura.

 

Em se falando de envolvimento, podemos falar sobre o cinema, teatro e literatura. Como não perder nossa identidade, nosso local, enquanto desfrutamos um bom livro, mesmo que durante determinado tempo? E como somos entusiastas ao conversar no fim de semana sobre uma narrativa qualquer que tenha nos agradado. Não apenas se tratando de livros, mas também do cinema e teatro. O cinema, aliás, é um produto que compartilha de popularidade semelhante à música. O fato da grande - talvez a maior - concentração de críticos de arte analisar esta arte corrobora a ideia. E não precisam (e nem devem) ser críticos profissionais e especializados o prumo da popularidade do cinema. Como na música, nós, os leigos, possuímos tal familiaridade a ponto de podermos escolher um filme ou livro ao nosso gosto, o que define cada estilo e qual nos agrada mais.

 

Igualmente as artes plásticas são difundidas, mesmo que nem sempre compreendidas pelo público. Juntamente à literatura, são estudadas na formação escolar (e estão presentes em praticamente todo lugar), e, mesmo que termine o interesse por estas ao final dos estudos, permanece uma familiaridade com o assunto, seus principais expoentes e obras, e todas aquelas famosas vanguardas que se expuseram em museus da Europa. No mínimo, uma reminiscência de que são importantes por algum motivo. Afinal, quem não conhece a Monalisa, ou Machado de Assis, ou aquele “quadro dos relógios que derretem” de Dali?

 

Continuamos falando sobre arquitetura.

 "e mesmo assim, podemos admitir com franqueza que não sabemos nada sobre arquitetura, que tipo de coisa é essa"

 

Cresce o interesse pela gastronomia, moda, quadrinhos, artes audiovisuais, e tantas outras com igualmente crescente entendimento de suas “razões de ser” pelo público.

 

E a tão famosa arquitetura, o que se sabe sobre ela?

 

Aqui cabe um bom experimento social: coletar respostas de pessoas aleatória para o que elas entendem o que seja arquitetura. Arrisco um provável resultado. Mais adiante, conto qual.

E você, já parou pra pensar no que é arquitetura? Sei que não. Eu próprio não fiz isso até bem pouco tempo. Bom, em nossa - minha e sua, leitor - defesa posso dizer que também nunca parei pra pensar no que é cinema gastronomia literatura ou música. Mas por que tanta intimidade com esses e tão pouca com a arquitetura? Porque somos expostos desde cedo às suas apreciações, sem necessariamente pensar o que é ou o que não é. Simplesmente apreciamos, julgamos, gostamos ou não. Música pra criança, filme todo dia na TV, reality shows sobre gastronomia, revistas de guitarra.

Todavia, não podemos afirmar que produtos arquitetônicos estejam esquecidos por estes veículos de mídia. Os próprios filmes, os livros nos apresentam cenas de ação em uma torre de Dubai, um drama na Central do Brasil. Alguns prédios de Nova Iorque seguramente têm muito mais horas de filmagem os que atores mais experientes. Na escola, estudamos alguma coisa na escola sobre as pirâmides egípcias, ocas brasileiras, Brasília. Mesmo que a própria mídia simplesmente inexistisse, cada pessoa deste planeta já se utilizou de uma habitação - seja o tipo que for.

 

E mesmo assim, podemos admitir com franqueza que não sabemos nada sobre arquitetura, que tipo de coisa é essa. Nem o que é uma boa arquitetura, sem necessariamente o conhecimento de sua definição, como fazemos com a música, cinema, etc. Assim, a resposta para a pergunta "que tipo de arquitetura faz meu gosto?" não vem tão fácil. Na falta de parâmetros ou alguma sensibilidade para resolver essa questão, dispomos apenas de adjetivos batidos para servir-se da arquitetura: despojado, suntuoso, moderno, diferenciado, elegante, etc. (vide panfletos imobiliários e revistas de decoração), que no fim das contas não dizem nada. E esse é o meu palpite de resultado do experimento social ali acima.

Existem apaixonados por música que não são músicos, cinéfilos que não são cineastas, pintores de fim-de-semana, etc., mas não existem apaixonados pela arquitetura fora dos arquitetos. Existem, sem dúvidas, arrebatados pelas esculturas formadas por belas casas ou mesmo o status social que muitos projetos oferecem à primeira vista: a arquitetura em Dubai tem seus méritos, mas encanta o público mais pela grandiosidade e suntuosidade que aquela economia permite realizar do que pelo próprio produto arquitetônico em si. Não existem apaixonados por arquitetura porque o público não sabe o que é arquitetura.

 

E não há o que culpar o público. Muitos arquitetos egressam das universidades sem uma noção clara do que é seu ofício. Confundem-se junto aos leigos na equação de arquitetura como união da estética com a organização de espaços, numa mentalidade semelhante quando da entrada na academia. Essa ideia é propagada pelo mercado, que vê o arquiteto como um mero embelezador de edifícios. Muitos profissionais assumem essa postura para manterem-se ativos. A beleza é uma das maiores funções da arquitetura, não sua definição.

 

Bruno Zevi, no didático “Saber Ver Arquitetura”, puxa a orelha:

 

“A ignorância da arquitetura. O desinteresse pela arquitetura. Mas diante de tamanha confusão crítica, podemos sinceramente culpar o público? Não é talvez a carência de uma interpretação clara e válida da arquitetura que determina esse desinteresse e essa ignorância? (...) Se os críticos de arte ilustram a arquitetura como um reflexo e um eco de tendências pictóricas, por que razão o público deveria deter-se sobre a arquitetura e não dirigir-se às fontes primordiais, ou seja, à pintura e à escultura?” (pg. 7, Editora Martins Fontes, 1996.)

 "a arquitetura envolve"

Mesmo enxergada (quando enxergada) num papel coadjuvante, a arquitetura figura como elemento principal de discussões atuais: a transformação de estádios brasileiros em arenas; as senzalas dos apartamentos, ou o ponto de encontro favorito para manifestações na cidade de São Paulo são alguns exemplos. Por sua onipresença, a arquitetura permanecerá no debate público (mesmo que muitas vezes em caráter secundário) infinitamente.

 

Para enxergá-la e criticá-la, entretanto, é necessário conhecê-la. Definições sobre o que é e o que compõe a arquitetura não são escassas, praticamente todo teórico de arquitetura possui a sua. Eis o problema: estas reflexões não ultrapassam o círculo dos arquitetos. A ignorância e a segregação entre arquitetura e público é um tema analisado extensamente em artigos publicados quase sempre por periódicos e livros especializados, o que derruba o esforço inicial.

 

Mas afinal, não existe a sentença que define a arquitetura? Existem várias, e muitas corretas. O objetivo aqui não é chegar a uma conclusão, mas acordar para uma nova reflexão.

É certo que a barreira entre arquitetos e público deverá ser rompida pelo lado dos profissionais. Isso não impede que o público interessado possa buscar por conta própria conhecer a arquitetura. Além dos profundos textos acadêmicos é possível encontrar autores que queiram se aproximar do público de maneira mais simples. Este próprio texto ecoa e simplifica ideias de grandes pensadores da questão, como o brasileiro Vilanova Artigas e o já citado italiano Bruno Zevi. E mesmo sem buscar embasamento teórico, é simples olhar à volta.

 

A arquitetura envolve. Estamos submersos em arquitetura em cada passo dado numa cidade. Um olhar mais atento, uma percepção atenta do espaço talvez se equipare à leitura de um livro. A palavra chave da arquitetura é esta: espaço. O espaço visto de todos ângulos possíveis: social, técnico, econômico, cultural, artístico, ambiental, etc etc etc etc. A arquitetura é vasta em disciplinas.

 

Na busca da definição mais simples possível, recorro à etimologia da palavra “arquitetura”: o grego arkhitekton (arkhi: primordial, capital; tekton: construção). Ora, qualquer um possui a capacidade de construir, de habitar; trata-se de uma habilidade tão humanamente elementar quanto a busca por alimentos. Para o mesmo “qualquer um” capaz de construir, saber ver a arquitetura é despertar para um novo campo de saber, sentir e conhecer o mundo e a humanidade.

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